“Nós somos a Natureza que se defende” (Nous sommes la Nature qui se défend). Com esta frase escrita numa faixa, defendem-se “um bando de selvagens semi-nus” contra o avanço impiedoso do Pogréssio, como o apelidou o sambista Adoniran.
Uma aliança inter-espécies e inter-étnica se faz de barreira contra a invasão desmatadora e assassina dos aniquiladores de floresta. Estes pregam o evangelho do “desenvolvimento sustentável”, aquele mau e velho greenwashings. Mas a protagonista do filme SAUVAGES (2024), animação dirigida pelo suíço Claude Barras, descobrirá em sua travessia iniciática pela selva que os tais apóstolos do desenvolvimentismo podem até colocar coqueiros como suas logomarcas, mas são capazes de homicídio contra quem empata sua foda ecocida.
A menina que protagoniza o filme decide adotar um macaquinho que ficou órfão depois de sua Mãe-macaca ter sido morta pelos desenvolvimentistas que, com trabucos e tratores, chegam com costumeira indelizadeza para “modernizar” as áreas bárbaras.
A arte da animação, sobretudo por influência da Pixar e da Dreamworks, está repleta de aparatos de fofurização. Aqui temos também a figura do macaco-bebê que fornece-nos uma overdose de fofura – em analogia ao também recém-lançado THE WILD ROBOT, de Chris Sanders, em que um fofo filhote de ganso, também órfão, é adotado pelo desafortunado robô que naufragou e foi parar na ilha selvagem retratada na mais recente produção da DreamWorks Animation.
O filme de Barras é ecologicamente mais denso e lúcido do que a fábula eye-candy da Dreamworks. O que significa que SAUVAGES é mais politizante, enquanto THE WILD ROBOT, apesar de sua lindeza, de sua perícia técnica impecável, tende mais ao alienante.
A mocinha no cerne de SAUVAGES foi ensinada desde bebê que sua mãe foi devorada por uma pantera. Parece nunca ter suspeitado que isto era fake news. A mocinha, órfã, foi também ensinada a temer a floresta e manter-se longe dela. Sua jornada é de re-descoberta de ancestralidade e é propulsionada por seu encontro com o “primo” indígena, elo que a levará à sua família indígena-nativa. Junto com seus parentes, o “primo” está envolvido numa luta de auto-defesa contra os que vêem a floresta como derrubável e transformável em mercadoria.
Há elementos dum ecologismo naive, duma ingenuidade condenável neste filme? Talvez, e certamente antropológos e etnólogos apontariam o quão rasa e superficial é a perspectiva antropológica deste filme fofo mas pancada.
De todo modo, Barras inscreve na pedra da montanha, entre cachoeiras, um signo de uma selvageria re-dignificada: SAUVAGES participa um pouco do clima cultural que preconiza a re-selvagização (em inglês a palavra é mais curta e grossa, mais precisa: RE-WILD). Também merecerá a atenção dos estudiosos da economia do decrescimento.
O que retira o excesso de naiveté e põe mais pé-no-chão nesta peça de animação é a descrição da cadeia alimentar, da “começão” entre bichos, com macaquinhos devorando sanguessugas, humanos apunhalando e depois assando javalis, sem falar no espectro da pantera devoradora de carne-humana.
A presença de cobras venenosas – uma delas causando a quase-morte do macaco-órfão co-protagonista – também pinta o retrato de uma selva de riscos, uma selva impiedosa.
Penso que o filme é uma boa peça pedagógica naquele sentido Ailton Krenakiano da “fricção”. O Krenak preconiza que a criançada precisa aprender tendo FRICÇÃO com a Natureza, ao invés daquela coisa higienista e separatista de manter a criança limpinha e bem longe de tudo que é feral e selvagem. Eis uma ficção que serve de mediação para uma pedagogia Krenakianamente pró-fricção. A protagonista, que foi excluída do ambiente feral de sua primeira infância, faz sua re-entrada neste. E se alia à auto-defesa da Natureza contra as tropas do Mercado e do Estado.
O aspecto inter-geracional também merece alguma reflexão pois desde sua epígrafe o filme evoca a geração mais jovem e também as vindouras (os jovens do futuro, ainda não nascidos). O celular da menina torna-se co-protagonista: ela, geração Z, “viraliza” com um vídeo denuncista dos horrores ecocidas na rede. E a menina é muito mais heroína do que seu papai, patriarca contra-exemplo.
A relação pai e filha atinge seu clímax dramático quando, na selva, verdades enterradas vêm à tona (alerta de spoiler a seguir): a mãe da mocinha não foi devorada por pantera coisa nenhuma, foi é morta pelos capangas dos desmatadores e dos abridores de estradas. O pai revela que mentiu, entre lágrimas, e toma uns bons socos da pequena, enfurecida. Depois a catarata de lágrimas. Em resumo: nossa protagonista é um pouco como os filhos de Chico Mendes. Sua orfandade é análoga. Num ato de rebeldia contra a figura paterna, que revelou-se mentirosa, a menina arranca o boné que o pai veste com a logomarca da empresa odiada, que este pai traíra serve em submissão lastimável, a fedelha lançando o boné e seu símbolo ao fogo. Esta jornada iniciática é também aprendizado de uma salutar rebeldia.
SAUVAGES também opõe os revólveres do front modernizador “civilizado” às flechas e zarabatanas dos “selvagens” do Borneo. É uma animação que põe seu dispositivo de fofurização a serviço de um retrato de uma outra “luta-de-classes”, aquela descrita por Bruno Latour entre os modernos humanos antropocênicos e os terranos de Gaia que defendem a hoje colapsante época geológica do Holoceno.
Os trabucos opressores que servem ao des-envolvimento encontram aqui a resistência de uma aliança inter-espécies e inter-etnias que inverte a hierarquia hegemônica que põe o mundo industrial-urbano no pólo positivado da Civilização e expulsa o mundo selvagem-agrário para o pólo negativado da Selvageria.
O efeito “pedagógico” deste filme, que não deve ser confinado ao âmbito do cinema infanto-juvenil pois tem algo a dizer aos humanos de todas as idades, consiste sobretudo no retrato simplificado da Guerra dos Mundos vigente – não a de H.G. Wells, mas a de Bruno Latour.
O convite que BARRAS nos faz, nesta produção belga, é o de nos re-selvagizarmos na companhia de sua heroína e a fazermos a mímesis de sua escolha de alianças. É neste sentido que SAUVAGES também, parece-me, conecta-se muito com o universo do Estúdio Ghibli, evocando semelhanças com várias heroínas de Hayao Myazaki, como a Princesa Mononoke ou a Chihiro.
Quem despreza o cinema do Ghibli ou do Barras, com arrogância baseada em adultice, querendo confinar tais obras ao âmbito do “filme só pra pirralhos”, fecha os olhos para o fato de que o cinema é uma força histórica também a partir de seus efeitos sobre a geração mais jovem. Seria um grande descuido do “crítico cultural” ignorar uma produção voltada aos que são mais recém-chegados ao mundo comum do que nós, que já estamos na metade final de nossas vidas.
SAUVAGES pode ser visto por todos, mas sua pedagogia fílmica re-wildizante tem que ser avaliada criticamente sobretudo sobre os efeitos sobre as gerações mais novas – e neste sentido ele produz, parece-me, bem-vindos efeitos: uma valorização da ética inter-específica e inter-étnica, e uma conclamação à formação de novas Gretas Thunbergs.
Publicado em: 16/11/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia